DIVULGAÇÃO ESTRATÉGICA...

Com alguma surpresa, foram divulgadas esta semana as estatísticas da criminalidade de 2005, pelo Diário de Notícias. Dizemos «com alguma surpresa» porque os dados que alguém de dentro do Ministério da Administração Interna forneceu ao DN são parcelares da criminalidade nacional e não totais como se depreende de algumas partes da notícia, não se justificando, a nosso ver, a sua publicação sem que o Relatório de Segurança Interna de 2005 estivesse concluído.

Em tempos, quando o nosso audacioso professor Cândido da Agra foi questionado pelo então Ministro da Administração Interna, Figueiredo Lopes, sobre o valor das estatísticas criminais em termos de estudo da criminalidade, em Portugal, respondeu que «valiam zero!» Se em parte concordamos com o mestre, por conhecermos as suas fragilidades, não deixamos de discordar na medida em que as estatísticas no nosso país valem muito para além da caracterização da realidade que documentam, chegando mesmo para mascarar incompetências e para colher proveitos políticos...

Tem sido assim e continuará a ser até que se consiga recuperar de um atraso de décadas em termos de sensibilidade e cultura estatística que, como se sabe, apenas teve como impulso a adesão de Portugal à CEE de modo a permitir a fundamentação de algumas negociações.

Os dois últimos parágrafos escritos apenas servem para demonstrar a leitura que fazemos do facto de terem sido divulgados da forma que foram os referidos dados, evidenciando que a decisão foi estratégica na medida em que esvazia o que de mais importante e preocupante existe nas estatísticas criminais de 2005.

Como é público, o somatório da criminalidade que foi denunciada às várias forças policiais, durante os 365 dias, de 2004, atingiu os 405.605 crimes, representando uma média diária de 1.111,2 crimes, conforme consta no Relatório de Segurança Interna de 2004. De acordo com os Inquéritos de Vitimação do Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça e em conjugação com as conclusões de Jorge de Sá e Luís Reto, (2002), Voxpopuli, Editora Bertrand, Lisboa, p. 112, apenas correspondem a 50% do total de crimes praticados em Portugal, sendo sobretudo os pequenos crimes que ficam por denunciar e que felizmente são o grosso dos crimes portugueses.

Em 2005, segundo foi divulgado pelo DN, a criminalidade diminuiu 6,2%. Terão ocorrido 380.000 crimes, ou seja, menos 25.605 crimes do que em 2004, representando 1.004 crimes diários, menos 7 crimes por dia do que em 2004. Não é linear que seja assim, porque faltam os dados referentes à Polícia Judiciária, o que exige uma leitura muito cautelosa.

Não dispomos de dados suficientes para garantir que tal facto seja verdadeiro. Desde logo falta-nos um inquérito de vitimação, realizado em 2005, para saber se aumentou ou diminuiu a propensão para as vítimas denunciarem os crimes às autoridades, bem como as variações nas propensões de denúncia em cada um dos tipos de crimes ocorridos em 2005 e respectivas motivações.

Sabemos também que à Polícia Judiciária está cometida a investigação da criminalidade mais violenta, mais organizada e por sinal a mais complexa, à qual em abstracto correspondem penas de prisão superiores a cinco anos, tendo em 2004 sido participados à PJ 14.045 crimes. Sabemos também que a referida criminalidade violenta e mais grave, em 2004, cresceu 3,4%, tendo ocorrido 21.867 crimes, portanto mais 726 ocorrências em relação a 2003.

Em relação aos crimes participados à PJ, em 2005, por enquanto muito pouco se sabe para além de que a criminalidade violenta cresceu significativamente e a nosso ver é neste ponto que reside o verdadeiro problema da criminalidade portuguesa. É por isso que a divulgação das estatísticas criminais do Ministério da Administração Interna, sem as estatísticas criminais do Ministério da Justiça, apenas dá para desconfiar, até porque nada acontece por acaso!

É de desconfiar do motivo pelo qual se procurou transmitir com tanto empenho que a criminalidade, em 2005, diminuiu 6,2%, encontrando-se como único motivo o interesse em desvalorizar o aumento da criminalidade violenta em Portugal que ano após ano tem vindo a aumentar e que em 2005 bateu todos os recordes.
Supervalorizando-se o que há de positivo atenua-se o negativo! Será que ninguém se lembrou disto?

Na realidade a redução da denúncia dos pequenos delitos não tem grande significado até porque estão fortemente dependentes da crença das vítimas na possibilidade de se fazer justiça e que por motivos diversos apresenta oscilações muito significativas. Por outro lado crimes como a condução com álcool, condução sem habilitação legal e outros resultantes da maior ou menor actividade policial estão fortemente dependentes da motivação do efectivo policial, podendo haver uma influência clara no resultado final. Nesta matéria, era também necessário um estudo sobre as variações da motivação do efectivo policial, em 2005, além do número de operações policiais realizadas.

O que nos deve verdadeiramente preocupar é que, apesar de a criminalidade violenta, ano após ano, estar a aumentar, a probabilidade de um indivíduo cometer um crime e ser preso por tal facto está a diminuir, estando, portanto, a aumentar a impunidade. Disto infelizmente ninguém fala...talvez por desconhecimento...mas, entretanto abundam os discursos politicamente correctos!

Mas vamos aos números: no ano 2000, para que o autor de um crime entrasse nas prisões portuguesas, era necessária a denúncia de 61,7 crimes. Em 2001, para a entrada de um indivíduo em reclusão, o número de crimes a denunciar baixou para 53,1, em 2002, subiu para um recluso por cada 54,1 crimes denunciados, em 2003, subiu para 59,6 crimes denunciados e, em 2004, foi necessário denunciarem-se 71,5 crimes para que um indivíduo entrasse nas prisões portuguesas quer como preso preventivo quer como condenado.

Enquanto em 2000, para ocorrer uma reclusão, era necessário serem denunciados 61,7 crimes, em 2004, passou a ser necessário 71,5 crimes, com a agravante de em 2004, a criminalidade violenta e grave ter crescido 3,4%, e a criminalidade grupal, 5,7%.

Assim, não podemos concluir outra coisa que não seja que: – ou os tribunais se estão a esforçar por não aplicar a pena de prisão; – ou as polícias reduziram a sua eficácia na identificação, captura e recolha de provas que permitem aos tribunais optarem pela reclusão...algo se passa, porque nada acontece por acaso!