GOVERNAMENTALIZAÇÃO: DE QUÊ?

Durante quase duas semanas, a questão policial esteve na ordem do dia, marcando até a agenda do debate político do nosso país. Confessamos ser difícil encontrar no tempo um período em que se ouviu tanto disparate junto sobre tal matéria. Alguns desvalorizarão os disparates proferidos com o direito que todos temos à opinião!

É verdade, todos temos o direito à opinião! O direito à opinião até serve cabalmente para não dar importância aos disparates de grande parte de quem os profere, mas o mesmo já não pode ser dito em relação a muitas das pessoas que aceitam fazer parte do grupo dos que têm o dever de informar, de esclarecer, de explicar e sobretudo de não baralhar os demais.

Ocorre-nos escrever tudo isto a propósito das acusações de governamentalização da Polícia Judiciária (PJ), da politização ou das supostas tentativas de interferência que sob a forma de avalancha sobre nós se abateu... mas vamos por partes.

A PJ é hoje considerada uma Polícia prestigiada e reconhecida internacionalmente pela sua competência. Tem sabido gerir um capital de saber fazer, aprendido ao longo de décadas e sobretudo com a proximidade do conhecimento científico emergente quer da prática quer do Laboratório de Polícia Científica de que sempre dispôs como nenhuma outra Polícia em Portugal. A divisão de competências que sempre existiu entre a PJ e as demais Forças Policias outra coisa não poderia permitir.

Em parte justificado pela missão, ao logo da sua história, a PJ dispôs de um manancial de informação criminal que lhe permitiu colher proveitos, reivindicar posições e protagonismos. A informação criminal foi sendo concentrada e monopolizada. Outros países cometeram os mesmos erros, mas, por exemplo, Espanha, França e Itália são hoje demonstrações práticas de como as necessidades de adaptação às transformações criminais e às novas ameaças obrigaram a corrigir os erros e a seguir o rumo da eficiência e da eficácia em detrimento dos interesses corporativos instalados.

No caso espanhol, fruto da ameaça do terrorismo chamado ETA, a reestruturação das Forças Policiais tornou-se inevitável e hoje dispõem de uma das mais competentes Polícias de Investigação Criminal. Provou-o o atentado de 11 de Março de 2004 e mais recentemente o atentado de 7 de Julho de 2005 em Londres que levou a Polícia inglesa a pedir ajuda à congénere espanhola para, no terreno, em conjunto, investigarem o caso. Como em Portugal, felizmente, os acontecimentos em matéria criminal não têm obrigado, tudo tem sido gerido mais ou menos de acordo com as conveniências da ocasião, sem um rumo e sem uma estratégia que sirva verdadeiramente os interesses securitários portugueses.

Em 2000, a Lei 21 provocou uma profunda alteração das competências em matéria de investigação criminal redefinindo o que compete a cada Polícia. A alteração, na altura, foi sobretudo contestada pela PJ que defendeu a perda de informação, sobretudo da informação que se prende com a pequena criminalidade cujo valor é importante por constituir uma fonte de informação para a resolução da outra criminalidade – a mais grave.

Apesar dos agoiros de entropia profetizados na altura, nenhuma desgraça veio ao mundo e tudo se foi processando na maior das normalidades e até com benefício para a população. Muitos dos crimes que a PJ não tinha tempo para investigar ou que, por uma questão de prioridades não eram investigados, passaram a ter outro tratamento.
Cerca de 70% de todo o trabalho distribuído àquela Polícia, até então, passou para a PSP e GNR que, fruto de uma maior proximidade das populações e de uma maior penetração no submundo do pequeno crime, passaram a resolver parte do que anteriormente era liminarmente arquivado. De um total de cerca de 400.000 crimes por ano, denunciados em Portugal, de acordo com os dados de 2005, a PJ investiga pouco mais de 11.000 crimes. São sem margem para dúvidas os mais graves, mas por sinal os mais atípicos e que não caracterizam a criminalidade portuguesa, não justificando tanto fechamento e tanto monopólio de informação.

Combater a criminalidade portuguesa de hoje requer novas formas de abordagem. Se as ameaças são cada vez mais globais, não faz qualquer sentido que as Polícias tanto portuguesas como europeias possuam metodologias e estratégias que as dividam e as separem. É a própria União Europeia que o reconhece e recomenda aos Estados Membros que, fruto da ameaça terrorista, as Forças Policiais estejam cada vez mais próximas, cooperem mais e partilhem a informação.

Ora foi daqui que nasceu o esforço do Governo de José Sócrates em dar continuidade ao que na realidade foi iniciado em 2000. A acusação de governamentalização da Polícia Judiciária é totalmente infundada e descabida. Perdoem-nos a nossa convicção, mas quem o afirma ou desconhece toda esta novela de cordel ou está apostado em que tudo continue como está!

Desde quando é que os directores/comandantes das Polícias portuguesas não são nomeados por decisão política? Desde quando é que Política e Polícia não se confundiram? Desde quando é que Política e Polícia não se subjugam e auto-sustentam? Sejamos realistas!

O Gabinete Coordenador de Segurança é um órgão na dependência do Primeiro-Ministro, cujo coordenador é nomeado por decisão política. Trata-se de um órgão de cooperação onde têm assento representantes de todas as forças e serviços de segurança, cujo objectivo primeiro é a coordenação do combate à criminalidade. Se assim é, não faz qualquer sentido que exista alguma informação de cariz policial que não passe por aquele órgão independentemente de poder vir a ser explorada por esta ou por aquela Polícia.

Diga-se em abono da verdade, a informação fornecida pela EUROPOL ou INTERPOL, desde a primeira hora, deveria ter sido centralizada no Gabinete Coordenador de Segurança e não na posse de uma única Polícia, como acontece, gerindo-a e colhendo os proveitos mediáticos que entende.

No nosso artigo de 12 de Março de 2006, neste jornal, depois do erro cometido por Santos Cabral, quanto à criação da Unidade Rápida de Intervenção dentro da PJ, escrevemos que era um erro e que Santos Cabral não iria ter muito espaço para continuar como Director daquela Polícia. Foram só necessárias três semanas para que se confirmasse a nossa previsão! Se têm dúvidas, releiam o que escrevemos na altura...

Por tudo isto, cada vez faz menos sentido manter separado o que deveria estar próximo, interligado, a funcionar de forma cooperante e a rentabilizar os esforços...A menos que tenha sido reinventado o conceito de cooperação, deixando de ser sinónimo de partilha e benefício para todos!