«NEGLIGÊNCIA DECISIONAL»...

Datado de 27 de Maio de 2004, um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, assinado pelos juízes Pereira Madeira, Santos Carvalho, Rodrigues da Costa e Quinta Gomes, reduziu a pena de 20 anos de prisão efectiva, aplicada a um indivíduo do sexo masculino que havia morto a esposa com dois tiros à queima-roupa, na presença dos filhos menores, para 16 anos de prisão.

Na altura, instalou-se a estupefacção social em conformidade com o pensamento de um conjunto de personalidades que gozam de algum protagonismo jurídico que não se pouparam a críticas, considerando o acórdão desfasado das expectativas sociais.

O referido acórdão assumiu um pendor conservador e até de certa forma machista, legitimando-se no Código Civil. Foi invocado o incumprimento dos deveres matrimoniais da vítima, por recusar ter relações sexuais com o marido, considerando como agravante a suspeita daquela lhe ser infiel.

Assim, depreendeu-se que tais factos foram considerados atenuantes para o comportamento do homicida. Associações de apoio a vítimas de violência, defensores dos direitos da mulheres, juristas e mesmo cidadãos comuns nem queriam acreditar no sucedido.

Volvidos quase dois anos, um outro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça volta a pôr a sociedade portuguesa em alvoroço, por considerar legítima a utilização de violência na educação dos menores, afirmando mesmo que os pais ou educadores que se abstiverem em dar umas palmadas ou umas bofetadas nos seus educandos assumem uma postura de «negligência educacional».

É sabido que os juízes não têm necessariamente de ter conhecimentos profundos sobre metodologias e técnicas de educação, não têm de ser pedagogos para julgar um caso relacionado com a educação de crianças ou jovens, todavia era suposto saber-se que amarrar pés e mãos de crianças e fechá-las em quartos escuros é de todo inaceitável aos olhos dos demais.

Se as agressões descritas que configuram mesmo um caso de maus-tratos pela forma, reiterada no tempo, como foram praticadas, são graves numa criança saudável, sem qualquer limitação física ou psicológica, aos olhos do cidadão comum, aquele que o Direito designa de «homem médio», são ainda mais graves quando praticadas sobre uma criança que padece de uma psicose infantil grave como foi o caso. Contudo, pelos vistos, nada disto parece importar aos juízes conselheiros responsáveis pelo acórdão citado.

Numa época em que a ONU, através da UNICEF, tem vindo a desenvolver um plano para erradicar a prática da violência ao nível do ensino e da educação, é necessário estar-se muito desfasado da realidade para se ter uma visão positiva de tais práticas quando as próprias sociedades já consciencializaram que não são aceitáveis.

Os nossos juízes conselheiros, pelos vistos, parecem pretender viver numa sociedade característica dos finais do século XVIII, conforme descreveu Michel Foucault na obra Vigiar e Punir, em que era utilizada uma máquina a vapor para a rápida correcção das crianças, sendo mesmo possível encontrar-se editais em lugares públicos a avisar «pais e mães, tios, tias, tutores, tutoras, directores e directoras de internatos e, de modo geral, todas as pessoas que tenham crianças preguiçosas, gulosas, indóceis, desobedientes, briguentas, mexeriqueiras, faladoras, sem religião ou que tenham qualquer outro defeito, que o senhor Bicho-Papão e a senhora Tralha-Velha acabaram de colocar em cada distrito da cidade de Paris uma máquina semelhante à representada na gravura e recebem diariamente em seus estabelecimentos, de meio-dia às duas horas, crianças que precisem ser corrigidas.

A questão das metodologias de educação das crianças, adolescentes e jovens, continua a ser debatida com grande vivacidade, mas no sentido de se encontrarem formas lúdicas, apelativas e sobretudo motivadoras para quem está a aprender, estando totalmente ultrapassado o modelo da educação e correcção por via da utilização da violência física que produz repulsa, aversão e desmotivação.

Apesar de as sociedades ocidentais terem percebido que a violência é sempre inaceitável, há ainda práticas profundamente enraizadas, conforme denunciou Boaventura Sousa Santos, no Congresso da Cidadania, Nordeste- Açores, a 25-02-2005. Em Portugal, os pais continuam a fazer uso excessivo dos castigos físicos quando comparamos tais práticas com a maioria dos países europeus. Em média, em Portugal, usam-se os castigos físicos até aos 13 anos, enquanto nos demais países da Europa as referidas práticas não vão para além da idade dos 8 anos.

Quando deveríamos dispor de tribunais que se esforçassem por combater a violência e principalmente a utilizada nos processos educativos e que não perdessem nenhuma oportunidade em prol desse combate aplicando as leis existentes de modo a banir da sociedade comportamentos censuráveis e contrários às boas práticas educativas, assistimos a um grupo de juízes que se esforçam por decidir com base em pressupostos de senso comum, retrógrados, tentando fazer escola com aquilo que a sociedade se esforça por considerar intolerável. É desejável que quem continua a acreditar na utilização de violência para educar, defendendo-a, pelo menos que se esforce no sentido de conhecer as conclusões dos estudos de Naomi Eisenberger (2003), da Universidade da Califórnia, sobre os efeitos da dor física no córtex cingulato anterior e os seus resultados em termos comportamentais. Talvez mude de ideias...

As duas decisões do Supremo Tribunal de Justiça às quais fizemos alusão são a demonstração do lamentável esforço que de vez em quando, também, os senhores juízes conselheiros têm necessidade de desenvolver no sentido de se auto-afirmarem, de cultivarem algum protagonismo, ou talvez para reivindicarem alguma carência de carinho tal como o fazem as crianças que não têm atenção devida por parte dos pais e dos educadores.

É caso para alertar que quem, competindo-lhe zelar pelo cumprimento das leis existentes e não o faz, configura «negligência decisional»...