FALTA DE REGULAÇÃO? (II)

Quando na semana passada escrevia a minha crónica na qual defendia a necessidade de uma nova regulação do exercício da medicina em Portugal, estava longe de obter os ecos que obtive quer através de abordagens directas de populares na rua, quer por telemóvel, quer por mail. Hoje tenho a convicção de que afinal existe uma consciência colectiva sobre a forma como a sociedade portuguesa tem sido claramente explorada pela classe médica.

Tendo reproduzido na anterior crónica apenas dois exemplos ilustrativos, fruto dos relatos que me foram feitos, inúmeros são os casos de situações que hoje poderia aqui reproduzir novamente, mas por força da limitação de caracteres que me está imposta não o posso fazer.

Se em termos de acusações ao nível da negligência os casos ao nível da denúncia são muito mitigados e mais residuais são os casos que em tribunal se consegue provar a referida negligência sobretudo por essa mesma prova continuar a assentar no depoimento de outros médicos, o mesmo não se pode afirmar em relação à evidente especulação em torno dos valores cobrados aos pacientes. Isto para já não falarmos naquele velho truque do preço variar em função da necessidade ou não de recibo.

Obviamente que nada nos move em particular contra nenhum médico, bem pelo contrário, tal como em relação a qualquer outro grupo ou classe profissional. Todos e todas merecem o nosso mais profundo respeito em particular quando têm sempre presente a necessidade do respeito pela dignidade da pessoa humana. Ora é precisamente aqui que entronca o problema, sendo por isso fundamental a intervenção do Estado para este grupo profissional, que é formado exclusivamente com dinheiro de todos; depois de formado, não pode nunca ter legitimidade para nos explorar da forma como o faz, tendo em conta os nossos níveis de rendimento.

Um dos casos que me foi relatado e que não resisto a tornar público diz respeito a um médico que exercia medicina no hospital e tinha um consultório privado. Decidiu abandonar o hospital para se dedicar em exclusivo ao consultório. Só trabalha uma semana por mês e aufere apenas nessa semana de trabalho mais de 5.000 euros mês, à custa dos valores exorbitantes cobrados aos pacientes! Isto é no mínimo escandaloso…

FALTA DE REGULAÇÃO?

Sem que tenha havido, até ao presente, coragem política para se abordar o problema, com profundas responsabilidades políticas, da direita à esquerda, continua a ser mitigado o número de médicos em Portugal, provando-o o facto de tantos médicos espanhóis e do leste europeu terem encontrado com facilidade espaço para o exercício da actividade por cá, enquanto milhares de jovens ao longo de anos têm sido preteridos e obrigados a frequentar outros cursos por falta de vagas nas universidades portuguesas, tendo-se interiorizado que apenas os alunos de 19 podem ser médicos, fazendo de Portugal um caso singular.

Recentemente um psiquiatra espanhol, que exerce a sua actividade em Portugal e em Espanha em simultâneo, dizia-me que a situação que mais o choca no nosso país é o endeusamento e proteccionismo da classe médica, chegando mesmo a provocar-lhe dissonância cognitiva.

Para além do quadro descrito, como técnico de intervenção social, choca-me a pura especulação no exercício da medicina sem que ninguém tenha coragem de abordar a questão com a racionalidade que se exige. Como é possível que um determinado médico na cidade de Braga, no exercício da clínica privada, cobre por uma cirurgia com laser às cataratas, 530 euros, e em Ponta Delgada, um médico igualmente no exercício da clínica privada cobre pela mesma operação 2.200 euros, quando a comparticipação do Estado para tal cirurgia se cifre nos 180 euros?

Recentemente um médico que se dedica às alergias cobrava 50 euros por consulta. Durante a consulta, fazia ao utente o diagnóstico das alergias sem qualquer outro custo. Agora esse mesmo médico cobra 55 euros por consulta e deixou de fazer o diagnóstico das alergias com a argumentação de que não tem tempo. Envia o paciente para um consultório onde existem umas enfermeiras que fazem o dito diagnóstico a troco de 150 euros.

Num período em que tanto se tem falado na falência da auto-regulação do mercado, será que perante o cenário traçado alguém deste país tem coragem de lutar contra o aburguesamento do exercício da medicina em Portugal e levar os médicos a respeitar o verdadeiro sentido do juramento de Hipócrates?!

E A CLASSE POLÍTICA?

Os magistrados passaram a poder ser responsabilizados pelos erros judiciais que possam cometer nos processos sobre os quais intervêm, desde que os prejudicados procedam judicialmente. É a chamada Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, levando a que os lesados sejam indemnizados monetariamente.

O sindicato dos magistrados do Ministério Público anunciou que ainda antes do final do ano aquela classe irá dispor de um seguro de responsabilidade civil para poderem fazer face às novas exigências legais.

É evidente que a reparação de lesados pelo sistema de justiça, como por exemplo pessoas que são indevidamente privadas da liberdade por erros judiciais imputados aos titulares dos processos, se apresenta como uma das mais elementares formas de justiça e apenas peca por tardia.

O cenário descrito suscita-me, no entanto, uma outra reflexão. E então os erros da classe política, quem os assume? E quando dirigentes políticos descriminam? E quando dirigentes políticos cometem autênticos atentados à honra e à dignidade de inúmeros concidadãos? E quando dirigentes políticos permitem que sejam praticados atentados ambientais? Não deveria também haver formas expeditas de reparação das vítimas?
Entendo que, para além da responsabilização política, feita através do voto em que podemos correr pelo menos com aqueles que são efectivamente eleitos através de sufrágio, e para além das responsabilizações criminais, há espaço para se agilizar a possibilidade de responsabilização dos dirigentes políticos quando prejudicam terceiros.

Bem sei que já é possível fazê-lo, mas o que é um facto é que as pessoas por norma não recorrem a tais expedientes sobretudo por não acreditarem no êxito de tais processos. Ora este é precisamente um problema que merece uma reflexão profunda porque por um lado é necessária uma maior responsabilização dos dirigentes políticos e por outro é necessário que os cidadãos passem a acreditar mais na classe política que os representa, pelo menos supostamente!

CRIMINALIZAR O ASSÉDIO MORAL?

Mais um vez diferentes órgãos de comunicação social abordaram a problemática do denominado assédio moral no trabalho. Afirmando-se como uma prática crescente no mundo laboral, é de extrema importância que a comunidade esteja consciente da gravidade da situação e reflita sobre a forma como a pretende combater.

Não há dúvida que o assédio moral, ou seja, como se diz na gíria, a decisão de a entidade empregadora colocar um trabalhador na prateleira, de colocar um trabalhador num espaço muitas vezes sem qualquer condição, sem que possa dispor de ventilação e da luz do dia, entre outras carências, sem qualquer tarefa para realizar, de forma a que sinta que está a mais naquele local, é a mais degradante e humilhante forma de tratamento.

Não conheço nenhuma outra forma capaz de proporcionar maior sofrimento a um trabalhador do que submetê-lo a um processo de rejeição numa lenta agonia. O trabalhador é forçado a consciencializar que não tem aptidão, que não tem mérito, desenvolvendo baixa auto-estima e baixa capacidade de resistência à frustração.
Estima-se que, na Europa, existam 16 milhões de trabalhadores nesta situação e cerca de 100.000 só em Portugal. O fenómeno apresenta tendência de crescimento em períodos de contracção económica, em que as entidades patronais não resistem à tentação de se livrarem dos trabalhadores sem os despedirem, pois sabem que a tendência normal de um trabalhador colocado em tal situação é pedir a demissão. Só os mais fortes psicologicamente e com um bom suporte familiar conseguem resistir, apesar de ninguém ser capaz de ser indiferente a tal situação.

Embora estejam tipificadas como crime diversas práticas exercidas no contexto descrito, entendo que faz todo o sentido criminalizar especificamente o assédio moral no mundo laboral!